quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Como eu imagino você II

O amanhecer me trouxe a sensação que me despedi ao adormecer.
Como haveria de ter sonhado com um sonho?
Vesti-me para iniciar as tarefas do dia, e antes mesmo que terminasse de colocar o vestido, o telefone tocou:
- Bom dia!
  Hoje vou tomar um vinho com você.
A voz, sim, a incomparável.
Mesmo se houvesse qualquer estratégia que o ego fizesse persistir, eu insistiria em jamais ouvi-la.
- 18:30, Aprazível.
Ouvi o seu sorriso, sim, ouvi, o alargar da sua boca era audível de tão poema que se tornara aos meus ouvidos.
- Passo para buscá-la às 18:00.
Sim, controlei a ansiedade pois sabia que em algumas horas eu estaria absolutamente imersa em uma das melhores conversas que já me reparei na vida.
A diversidade de temáticas e o modo como abordávamos cada uma delas exclusivamente não era o menos fantástico.
Incrível mesmo era como pareciam ser as primeiras vezes que detínhamos os viéses que trocávamos.
As primeiras vezes que enxergávamos por aquela ótica, aquele meandro, aquela epifania.
Pontualmente estava pronta, o batom vermelho representava o clichê que eu nunca fiz transcorrer pela minha pele em um primeiro encontro.
Um clichê concentual que para mim fazia parte de mais uma das primeiras vezes que aquela noite ainda fariam representar e acontecer.
Era um Opala, preto com aros metálicos, surpreendente.
Seu semblante irretocável ainda me causava espanto por tanta simetria e destreza.
Não era misterioso, mas dominava suas expressões de uma maneira tão ideal que eu jamais poderia racionalizar.
E ao mesmo momento as esboçava em uma particularidade súbita e impecável.
Mais do que querer estar ali, eu senti que ele me queria ali, exatamente à sua frente, para que pudesse abrir a porta do carro permitindo minha entrada.
As palavras trocadas jamais serão cabíveis de escrita,
Vai além do corpo, do timbre, do som, vai além de linhas sobrepostas umas às outras.
Seu cavalheirismo desafiava meu instinto de admiração constante pelas ações que para ele fluíam tão naturalmente.
Entre um prato frio e outro esquecíamos que precisavámos calar para mantê-los quentes.
  - Amanhã vamos no japonês, assim não tiramos o crédito do chef!
Positivo e operante! Degustar daquela conversa ultrapassava qualquer entendimento que o paladar, tato, visão ou olfato já houvessem me proporcionado.
Ele agira com a certeza de estar em posição de controle, um controle que simbolizava que sua confiança era interligada diretamente à minha.
E como em uma transfusão, exprimíamos opiniões e veredítos sem qualquer resistência ou barreira,
transmutando a própria autoconfiança, uma na origem da outra.
Minhas falas eram correspondidas sem que houvesse tempo para pensar nas implicações de estarmos nós dois, ali, juntos.
Sós, nua e cruamente, sós.
Agora, inexplicavelmente, tinha a impressão de que haviam desaparecido as palavras que antes estavam na adorável dominância dele.
Tudo se resumiu a um momento de silêncio, ininterruptível.
Um torpor em fase de indulção, emoldurado pelo contorno imóvel da testa, da face, do queixo e dos lábios dele.
Enquanto olhava fixo, para mim, penetrantemente.
A distância entre nossos rostos foi se estreitando, e quando pudemos tocar o nariz, um no outro,
ele permanecia a olhar, sem vascilar por sequer um segundo daquele imutável instante.
Lábios, os primeiros que tocaram aos meus enquanto seus olhos permaneciam fixados aos meus.
Era importante para ele ver a minha reação àquilo tudo que estava acontecendo.
Por onde ele estava?
De onde sentia tanto que já o conhecia?
Me dei conta que foi exatamente esta pergunta que me fiz ao vê-lo entrar pela porta há um dia atrás.
E em súbito compasso percebi que só poderia se tratar de outra existência.
   - Te encontrar é privilégio, abundante, constante, indescritível, e a cada dia quero comemorar a sua chegada, em minha vida.