sexta-feira, maio 17, 2019

Extensão acidental.


Na sua direção, o céu já anunciava o nascer do sol pelas janelas, junto às montanhas que refletiam como espelho a alvorada, e sua tonalidade rosa-alaranjado típica do início de outono. O aparecer da luminosidade trazia com ela não só o dia, como também a composição na química que os pensamentos influíam em mim, com a legítima promessa da luz, literal, estar por vir, estar por mim. 

Outros sentidos despertavam em ação, o som fluído e intempestivo a saudar o amanhecer para aqueles que desejam ou não o apreciar. Não os pássaros e seus cantos, e sim a velocidade que as horas começavam a tomar com o despertar da cidade e toda atividade que nela compõe, que dela dispõe.

E no brilho das vidraças ornamentais dos prédios, o dia nascia esquentando por onde houvesse superfície cromada, do cinzeiro da cabeceira às fundações edificantes, a simplicidade descontraída do toque da luz fez-me encarar a presença de um novo dia. Um novo dia a compor a rotina matinal daquela cama que deitei pela segunda noite consecutiva.

Já não precisávamos dizer nada, o “Bom dia!” havia sido horizontal, o que instantaneamente transmitia a sensação de que você dava toda uma ênfase especial àquilo, não só através da dominância consciente que lhe caíam muy bem, mas principalmente pela naturalidade em encarar a minha presença e os vértices que dela partiam em não ocupar espaço no ‘se acostumar’.        

Meu olhar se fixou nas cicatrizes de suas costas, nos ombros expostos, nas veias marcando os braços, cotovelos, punhos, mãos...e circulando, pertenci a cada pedaço de pele e tecido que compunham aquela imagem, a sua imagem, naquele segundo, naquele milésimo de segundo confrontando sua envergadura, me fiz aconchego, vestindo sua camisa social branca, colarinho aberto e botões ardilosamente desabotoados. Selei meu corpo no seu com o vapor daquele cenário entre bule, cafeteira italiana, pó de café e a boca do fogão, e na boca, calor e paladar. 

A leitura ligeiramente transparente de sua expressão me levara aos fios de cabelos que, descontraídos, emolduravam o formato do rosto, o rosto que a criação de um novo idioma se fazia urgente para comunicar, fidedignamente, descrição e reação. Inocentemente, te admirar me emprestava um ar de menina, convalescente do passado e reestabelecida ao agora, ao sorriso que, de repente, você acabou de dar, não exatamente de mim, mas como se tivesse lembrado de algo que o fizesse sorrir, amplamente. Fazer despertar em você alguma lembrança com um significado desconhecido e todo seu, me transbordou. Principalmente por não poder saber qual era. Você continuava sorrindo, como se visse uma imagem distante mesmo que com os olhos travados nos meus. Como se fosse de mim, riu, como se fosse sua memória, e minha também. Como se fosse sua história, e minha também.

A janela abriu, 

a cortina voou, 

a caneca caiu,

o café derramou.


E no vale das certezas concebido pela desgraça humana, floreamos a Terra.

Dedicados em desarranjar fórmulas acidentais através do nosso compasso. 

Vigorosos de que o acaso não é nosso destino natural,nem a tragédia, nem o sofrimento, nem a doença moral. 

Dotados da liberdade fortuita ao combate da calamidade antinatural. 

O desastre do desamor.

O anormal da vida humana.


Assistimos aos acontecimentos. 

Apreciamos a passagem do tempo.

Criamos conclave dos nossos pensamentos.

Suportamos as constatações que esvaíram com o vento.