segunda-feira, junho 24, 2019

O INVERSO QUE UNE VERSO.

À medida que decorava o prato com as frutas que compramos, internalizava, entrelaçada nos registros da noite passada, como me soava natural estar sozinha na sua casa. Em parte, uma emoção que jamais experimentei antes. Tratava-se do desconhecido em mergulho profundo em energias potentes, onde as partes se faziam lar e infestação de ideias. Endereçados como movimentos de dança, os pensamentos vinham e iam, tão raramente permitindo que se encontrassem, crescessem e formassem a possibilidade de um novo pomo a cada vértice criada.

Paredes brancas orquestravam o tom minimalista. A simplicidade tinha ar fresco, de limpeza, onde a iluminação do dia que cruzava as janelas destilava ainda mais a sensação de um pertencimento profundo em formato de novidade. Pertencimento por poder tocar a certeza que, de alguma forma, eu estava sendo acariciada por você. Um pertencimento que me fazia prestar mais atenção nos movimentos que incorriam de mim, através dos passos, das mãos...como se tocar o chão de taco riscado ou qualquer objeto ao meu redor caracterizasse uma afinidade ainda maior. Uma intimidade ainda maior. Excessivas e extensivas.

E com a ponta dos dedos friccionei a foto posicionada na mesa da sala. A finalidade era sentir a textura da ponta dos teus fios em cachos a corrente em seu pescoço que escapava pela gola da camisa verde sálvia. O rosto, de uma beleza tão perfeita que me tornara imóvel por longos ao que ainda me pareceram segundos. Olhando, internalizando, medindo, sentindo, você, do início ao fim, do fim ao princípio, e meio, e mais, admirar sua grandiosidade e simplesmente não conseguir cair na real. Era curioso permitir-me acreditar em tanto que via.

A sensação impessoal de não te olhar como se fosse um ser humano me trazia a certeza de que foi desenhado para ser uma obra de arte, e por descaso ou descuido do destino, a arte e suas partes foram animadas. Ressoava em mim o absurdo que é sujeitar uma perfeição como essa às cicatrizes de todos aqueles que se dispunham em levar da vida a vida que se leva. Me contradizendo, em absoluto, os traços dos seus ombros, braços, envergadura, possuíam a firmeza que resiste a toda e qualquer choque, resistência, perigo ou vivência. 

Era curioso sentir uma felicidade tão genuína acompanhada de uma satisfação tão tenra. Tudo por estar fazendo algo que me soava tão corriqueiro quanto preparar o meu próprio café. Como se pegar a água, colocar o pó de café, acender o fogo e apoiar a leiteira na boca do fogão fossem coisas que só se faz por prazer...por amor.  

Devolvi a fotografia para seu lugar de origem e permaneci, com sorriso largo e retinas intactas, observando-o. Tomando cada vez mais consciência do paradoxo curioso que existia entre olhar o novo e senti-lo tão profundamente comigo, e sentir-me tão agudamente contigo, constatando, em demasia, a realidade do pronome pessoal da primeira pessoa do PLURAL em nós.

Claramente, uma sensação ousada de bem-estar.

De despir-se de presunções.

De sentir-se em casa.

De formatar-se de acordo com a textura do que via, sentia tocava.

De mensurar sem convicção a certeza do que experimentava. 

A certeza da constatação de me sentir...dona.

Dona do material e do imaterial.

Dona da energia que integra diariamente aquele espaço.

Dona do proprietário daquelas paredes, móveis, molduras;

E ele, dono de mim.